domingo, 19 de maio de 2019

O mito da encarnação necessária de Deus

O mito da encarnação necessária de Deus (...) pode ser entendido como o confronto criativo do homem com os opostos e a síntese no eu: a completude de sua personalidade (...). Essa é a meta (...) que integra significativamente o homem no esquema da criação e, ao mesmo tempo dá sentido a ela. - C.G. Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões.

A história e a antropologia nos ensinam que a sociedade humana não pode sobreviver por muito tempo, a menos que seus membros estejam psicologicamente contidos num mito central vivo. Esse mito proporciona ao indivíduo uma razão de ser. Às questões últimas acerca da existência humana, ele fornece respostas que satisfazem aos membros mais desenvolvidos e perspicazes da sociedade. E quando a minoria criativa e intelectual está em harmonia com o mito predominante, as outras camadas da sociedade seguem sua liderança, chegando mesmo a poupar-se de um confronto direto com a questão fatídica do sentido da vida.
É evidente para as pessoas reflexivas que a sociedade ocidental já não possui um mito viável, operante. De fato, todas as principais culturas mundiais aproximam-se, em maior e menor grau, de um estado de carência de mitos. O colapso de um mito central é como o estilhaçamento de um frasco que contém uma essência precisa: o líquido se derrama e se escoa, sugado pela matéria indifenciada à sua volta. O sentido se perde. Em seu lugar, reativam-se os conteúdos primitivos e atávicos. Os valores diferenciados desaparecem e são substituídos por motivações elementares de poder e prazer, ou então o indivíduo expõe-se ao vazio e ao desespero. Com a perda da consciência de uma realidade transpessoal (Deus), as anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder.
A perda do mito central acarreta uma situação verdadeiramente apocalíptica, e esse é o estado do homem moderno. Faz tempo que nossos poetas reconheceram esse fato. Yeats expressou-o na perfeição em seu poema "O Segundo Advento:

Girando e girando no turbilhão que se alarga / O falcão não sabe ouvir o falcoeiro;/ As coisas se despedaçam; o centro não pode manter-se;/ A mera anarquia se espalha pelo mundo./ A maré tinta de sangue se espraia e, em toda parte./ A cerimônia da inocência submerge;/ Aos melhores falta toda a convicção, enquanto os piores/ Estão repletos de intensidade apaixonada./ Decerto alguma revelação está a caminho./ Decerto o Segundo Advento está a caminho. / O Segundo Advento Mal são tais palavras enunciadas/ E uma vasta imagem saída do Spirirus Mundi/ Turva-me o olhar: em algum lugar das areias do deserto/ Uma figura com corpo de leão e cabeça de homem/ Com um olhar branco e impiedoso como o Sol,/ Move seus membros lentos, enquanto a seu redor/ Volteiam sombras dos pássaros indignados do deserto./ Caem novamente nas trevas; mas sei agora/ Que vinte séculos de pétreo sono/ Foram tormentosamente embalados ao pesadelo por um berço balouçante./ E que besta selvagem, chegada finalmente sua hora,/ Arrasta-se até Belém para nascer?"

Esse poema, publicado originalmente em 1921, é surpreendente na maneira como toca sucintamente nos principais temas que concernem ao estado atual da psique coletiva. Quebrou-se o círculo mágico de nossa mandala e o sentido escapou. O ego-falcão perdeu o vínculo com seu criador, liberando do controle os níveis primitivos do inconsciente. O caos resultante conclama, em compensação, o nascimento de uma nova dominante psíquica central. Qual será ela? O Anticristo? A alusão à esfinge sugere que devemos mais uma vez enfrentar o enigma da Esfinge e perguntarmo-nos mais seriamente: "Qual é o sentido da vida?"
Edward F. Edinger, livro: A Criação da Consciência

Nenhum comentário:

Postar um comentário