domingo, 19 de maio de 2019

Ateísmo

Ateísmo
Para a maioria dos ateus no facebook é divertido compartilhar memes de humor religioso, falar de contradições na Bíblia e fazer piadas sobre pastores pentecostais. Mas existe algo intrigante quando se observa a constância dessas atitudes nas páginas ateístas: é que muitas pessoas não conseguem ir além disso e os que vão além em geral partem do humor para a agressividade.

E não é incomum as páginas ateias fomentarem essas posturas. Para citar um exemplo bem conhecido, a ATEA, sua página no face resvalou para um radicalismo antirreligioso às vezes infantil e intolerante, como pode ser observado em alguns memes que são postados na página.

Quando uma pessoa deixa a religião, por exemplo, um jovem com idade entre 17 e 20 anos, em geral suas primeiras reações são o deslumbramento com novos conhecimentos que adquire, com a possibilidade de ser feliz sem precisar de uma fé sobrenatural e também uma revolta com a religião, a sensação de tempo perdido por tanto tempo numa igreja e o sentimento de raiva frente a acusações, juras de maldição ou até mesmo com pregações que agora passa a desprezar.

Esse jovem então sente a necessidade de falar de religião, fazer crítica, falar mal de Deus e encontra nas redes sociais milhares de pessoas que, como ele, despejam toneladas de humor ácido e ressentimento contra a fé que abandonaram. Essa é uma fase de profunda imaturidade intelectual e quando passam muitos anos com esse mesmo posicionamento a incultura toma de vez o lugar de qualquer saber. Muitos nunca leram os clássicos da filosofia moderna, nem Durkheim, Weber, Eliade, Joseph Campbell e outros sequer ouviram falar de Karen Armstrong, Jean Delumeau, Christopher Hill ou Rodney Stark.

Daniel Sottomaior é um exemplo de ateu inculto que passou da adolescência. Sua postura de frequentar programas televisivos e afirmar categoricamente que Deus não existe é contraproducente. Sottomaior nunca se coloca como um filósofo, um sociólogo, um historiador, um estudioso de religiões, ele é sempre o ateu que fala a mesma coisa: as religiões são irracionais e Deus é uma ilusão. É como um dogmatismo religioso às avessas.

Esse tipo de atitude pode provocar nos ouvintes religiosos uma dissonância cognitiva: diante do choque de uma afirmação categórica de que a religião é falsa e não há nenhum Deus, o ouvinte se coloca na postura defensiva. Esse discurso lhe causa desconforto emocional e cognitivo porque se choca frontalmente com suas convicções, que ele reafirma contra o que está ouvindo.

O ateu inculto toma a religião como uma espécie de mal que pode e deve ser erradicado e então decide atacá-la. Ele não é um intelectual, não compreende o que está atacando e então ataca irresponsavelmente. Ele retribui com a mesma moeda o preconceito que recebe de algumas pessoas religiosas e percebe as religiões a partir de estereótipos ou de leituras dispersas. Ao se recusar a compreender a religião em suas múltiplas facetas, antropológica, literária, histórica, o ateu inculto se torna presa da própria ignorância: a agressividade é sua única arma de defesa e ataque.

Não são poucos os ateus que não compreendem o valor literário da Bíblia e sua importância para a formação da cultura ocidental, não conhecem as diferentes linguagens ali utilizadas e frequentemente dão crédito a pesquisas de pouco valor acadêmico,  Reafirmam ainda um cientificismo novecentista, que traduz a linguagem verdadeira sobre o mundo ao passo que as religiões representariam as falsas interpretações.

Os únicos lugares onde a militância ateísta ainda pode ter alguma importância são os países muçulmanos, muitos dos quais punem a descrença com a morte. No Ocidente, a secularização e o desencantamento do mundo mudaram a própria pregação religiosa, que deixou de centrar seus discursos na salvação e no inferno para oferecer prosperidade e bem-estar.

Ainda restou o fundamentalismo que, apesar de ser uma posição minoritária, faz algum barulho. Mas o fundamentalismo, como diz Karen Armstrong, é antes uma defesa do que um ataque; é uma reação da religião frente a um temor de aniquilação. Se fundamentalistas tentam intervir na legislação, o que se pode fazer é reafirmar a necessidade da separação entre religião e política e não é preciso ser ateu para fazer isso, porque muitas pessoas e lideranças religiosas compreendem a importância do laicismo. No campo da ciência, as investidas dos criacionistas ocorrem há muito tempo e nunca foram muito longe, por isso eles frequentemente tentam apelar às leis para que sua cosmovisão seja ensinada nas escolas.

O ateísmo moderno tem cerca de trezentos anos de história e nasceu como uma postura negativa de crítica e combate à religião de Estado e à intolerância subjacente a essa condição. Hoje, porém, um ateu que ocupa seu tempo a fazer militância antirreligiosa e a ridicularizar a religião se prende a uma postura infantil anti-intelectualista como aqueles que tentam provar cientificamente o Gênesis.

O ateu militante em geral não saiu da condição juvenil de revolta contra a religião. O ateísmo está superado enquanto postura intelectual, não porque seja falso, mas porque não tem mais importância do ponto de vista científico. Ou seja, defender abertamente o ateísmo em qualquer meio científico não é mais algo ousado, é antes um discurso como qualquer outro. Já o neoateísmo ainda é válido por pontuar algumas questões sobre a relação por vezes ainda simbiótica entre religião e ciência, especialmente no caso dos Estados Unidos (por extensão, do mundo anglo-saxão) e atua principalmente no campo da neurociência e das ciências naturais.

Ser ateu no passado definia certo status intelectual, como no Iluminismo radical francês, na esquerda hegeliana do século 19 ou em Nietzsche, Freud, Darwin, Bakunin e outros. Mas o Iluminismo e a Revolução Francesa já fizeram o que deveria ser feito para que a religião fique confinada à esfera da vida privada no Ocidente. Quanto ao preconceito, isso pode ser atenuado no debate qualificado e com educação de qualidade. O esclarecimento dispensa a militância antirreligiosa porque suas ações se circunscreveram a outra época.

Qualquer postura que termine em fechamento ao diálogo vai ficar presa na armadilha do pensamento único, da voz que só ouve o próprio eco e vê nas demais inimigos potenciais. Quando você segue o caminho da pesquisa e da compreensão histórica esse tipo de militância se torna tão desnecessária quanto contraproducente.

Compreender historicamente a religião não significa abrir mão da crítica e as possibilidades de esclarecimento que se abrem com essa perspectiva não se fecham ao diálogo com uma alteridade nem se perdem na mera denegação a ela. Poucos ou talvez mesmo nenhum ateu que fica apenas na militância consegue perceber a importância disso.

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